Protocolos transfusionais I: transfusão de hemácias

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Orientar o médico sobre a indicação e a prescrição de concentrados de hemácias

Flávia Leite Souza Santos
Ana Cristina Silva-Pinto

Data da última alteração: segunda, 08 de julho de 2024
Data de validade da versão: quarta, 08 de julho de 2026

1. Características do concentrado de hemácias

O concentrado de Hemácias é preparado a partir do sangue total pela remoção de 200 a 250 mL do plasma, ou podem ser coletados por aférese. São estocados entre 2 e 6˚ C, em uma variedade de diferentes soluções anticoagulantes/preservantes. Concentrados de Hemácias estocadas em CPDA-1 têm hematócrito entre 65 e 80% e podem ser estocados por até 35 dias. Concentrados de Hemácias estocados não contém plaquetas ou granulócitos funcionais, têm um volume médio de 250 a 300 mL e contém pequeno volume de plasma.

2. Indicações
Restaurar a capacidade de transporte de oxigênio, tratar ou prevenir a inadequada liberação de oxigênio aos tecidos em decorrência de anemia. Porém, nem todo o estado de anemia exige a transfusão de CH. A transfusão de hemácias pode ser indicada na hemorragia aguda ou no paciente com anemia normovolêmica. Os dois cenários são contemplados abaixo.

2.1 Transfusão de hemácias nas hemorragias agudas

As perdas sanguíneas são classificadas de acordo com o volume perdido em Classe I a IV, conforme a Tabela 1.

Em geral as transfusões de CH estão indicadas quando houver perda volêmica superior a 25% - 30% da volemia total. Nestas situações o hematócrito não é um bom parâmetro para nortear a decisão transfusional, uma vez que só começa a diminuir uma ou duas horas após o início da hemorragia. Deve-se avaliar clinicamente e transfundir os pacientes de hemorragia aguda quando apresentarem os seguintes sinais e sintomas:
- Frequência cardíaca acima de 100 a 120 bpm.
- Hipotensão Arterial
- Queda de débito urinário
- Aumento de frequência respiratória
- Enchimento capilar retardado (> 2 segundos)
- Alteração no nível de consciência.

No choque hemorrágico não revertido com as medidas iniciais em que o volume da hemorragia indica a necessidade de transfusão maciça, seguir as orientações transfusionais contidas no PO específico de Transfusão Maciça.

2.2 Transfusão de hemácias em anemias normovolêmicas

Não existe um “gatilho transfusional universal" e pré-definido que possa ser aplicado a todo paciente. Assim, a decisão transfusional não deve se basear exclusivamente no nível de hemoglobina, mas deve levar em consideração diferentes variáveis clínicas, tais como: idade, velocidade de instalação da anemia, etiologia, história da evolução da anemia, volume intravascular e na presença de comorbidades, como disfunção cardiopulmonar. Estudos mais recentes comparando gatilhos transfusionais liberais (<9-10g/dl) e restritivos (<7-8g/dl) em pacientes críticos mostraram que os gatilhos restritivos não são inferiores aos gatilhos liberais e ainda levam a menor exposição do paciente ao risco transfusional. Assim, a tendência atual é adotar gatilhos mais restritivos para a maior parte dos pacientes com anemia normovolêmica estáveis. Um gatilho restritivo de transfusão de hemácias em que a transfusão não é indicada até que o nível de hemoglobina seja < 7 g/dL é recomendado para pacientes críticos adultos que estão hemodinamicamente estáveis. Um gatilho restritivo de transfusão de hemácias < 8 g/dL é recomendado para pacientes com doença cardiovascular ou outro fator de risco que são submetidos à cirurgia ortopédica (cirurgia de quadril) e para pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. O gatilho de 7 g/dL é provavelmente comparável a 8 g/dL, mas as evidências não estão disponíveis para todos os grupos de pacientes. Esses gatilhos não são aplicáveis aos pacientes com síndrome coraniana aguda e pacientes onco-hematológicos com plaquetopenia severa. Deve-se evitar a transfusão de pacientes com Hbmaior ou igual 9- 10g/dl. Os gatilhos sugeridos para diferentes situações clínicas estão na Tabela 2.
Em pacientes com anemia crônica, deve-se priorizar a investigação clínica e o tratamento da causa base, uma vez que após transfusão, possivelmente haverá maior dificuldade na investigação da sua etiologia. As anemias normovolêmicas em geral são de instalação crônica e são mais bem toleradas do que as anemias de instalação aguda, devendo-se priorizar o tratamento específico da causa da anemia. Para pacientes com anemia carencial, deve-se iniciar a correção da deficiência específica e reservar a transfusão para casos muito sintomáticos. Assim, em pacientes com anemia ferropriva conhecida e estáveis hemodinamicamente, a transfusão não está indicada! Deve-se priorizar a reposição de ferro e considerar a reposição endovenosa para os casos mais graves visando a recuperação mais rápida da hemoglobina. O mesmo é válido para pacientes com sangramento controlado e estáveis (por exemplo após hemorragia pós-parto).


3. Modo de administração e Dosagem

- Em geral, uma unidade de concentrado de hemácias aumentará o nível de hemoglobina em aproximadamente 1g/dL ou o hematócrito em 3% em pacientes adultos. Em pacientes pediátricos, a transfusão de concentrado de hemácias de 8-10mL/kg aumentará o nível de hemoglobina aproximadamente 2-3g/dL, ou o hematócrito em torno de 6-9%;
- Recomenda-se que no paciente adulto estável não seja prescrito mais de um concentrado de uma vez só. É aconselhável prescrever uma unidade de concentrado de hemácias e reavaliar o paciente. Muitas vezes o segundo concentrado não é necessário. Essa conduta reduz a exposição a doadores e principalmente o risco de sobrecarga volêmica.
- Deve ser infundido com equipo próprio, que contenha filtro para microagregados com poros em torno de 150 a 280 mícrons;
- Não deve ser aquecido de forma alguma, exceto com equipamento próprio para aquecimento de sangue (in-line blood warmer).
- Nenhuma medicação ou solução (exceto salina isotônica) pode ser adicionada à bolsa de concentrado de hemácias.
- O CH não deve ser comprimido manualmente durante a infusão devido ao risco de hemólise mecânica.
- O CH não deve ser colocado em bombas de infusão mecânicas com funcionamento por meio de roldanas, devido ao risco de hemólise mecânica. Existem bombas de infusão específicas para este fim.
- O tempo máximo para infusão de uma unidade de concentrado de hemácias é de 3,5 horas, visto que a validade de 1 CH fora da geladeira é de no máximo quatro horas; após este período o CH deve ser descartado devido ao risco de contaminação;
- A velocidade de infusão pode variar de 1-6 ml/kg/hora, respeitando o tempo máximo de infusão de 3,5 horas. Em pacientes com riscos de sobrecarga volêmica, o CH deve ser transfundido com velocidade de infusão de 1mL/kg/h,
- Em pacientes com risco de sobrecarga volêmica, pode ser prescrito diurético endovenoso antes ou durante a infusão do CH.
- São grupos de risco para sobrecarga volêmica: idosos, pacientes com cardiopatias, pacientes com doença renal crônica, pacientes pediátricos.
- Em pacientes internados, atentar ao volume total de fluidos recebidos nas últimas 24h e ao balanço hídrico do paciente.


4. Contraindicações
Anemias carenciais sem repercussão hemodinâmica

Vide definição acima.

Vide definição acima.

Vide definição acima.

Vide definição acima.

Patient Blood Management Recommendations From the 2018 Frankfurt Consensus Conference. JAMA; 2019;321(10):983-997. doi:10.1001/jama.2019.0554
Transfusion thresholds and other strategies for guiding allogeneic red blood cell transfusion. Cochrane Database Syst Rev. 2016
Liberal or Restrictive Transfusion in High-Risk Patients after Hip Surgery.NEJM;365;26 ; December 29, 2011

Tabela 1: Tabela 1. Perda sanguínea estimada de acordo com apresentação inicial do paciente.


Tabela 1. Perda sanguínea estimada de acordo com apresentação inicial do paciente.

Tabela 2: Tabela 2.Gatilhos sugeridos para transfusão de hemácias em pacientes críticos.


Tabela 2.Gatilhos sugeridos para transfusão de hemácias em pacientes críticos.