Emergências Clínicas - Infecções Oportunistas do Sistema Nervoso Central em HIV/AIDS

Área: Unidade de Emergência / Subárea: Clínica Médica

Este protocolo tem por objetivo destacar as doenças oportunistas mais freqüentes na síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e que acometem o sistema nervoso central (SNC), uma vez que cerca de 40-60% dos indivíduos infectados pelo HIV apresentarão, em algum momento da vida, manifestações clínicas de alguma doença oportunista no SNC.
Optamos por apresentar as doenças em quadros resumidos, destacando seus aspectos principais, com foco no atendimento de urgência e emergência.

Raoni Moreira - Ex-médico Residente do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP
Fernando Fonseca França Ribeiro - Médico Assistente da Divisão de Emergências Clínicas do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP
Rodrigo de Carvalho Santana - Docente da Divisão de Doenças Infecciosas e Tropicais do Departamento de Clínica Médica da FMRP - USP
Valdes Roberto Bollela - Docente da Divisão de Doenças Infecciosas e Tropicais do Departamento de Clínica Médica da FMRP - USP

Data da última alteração: terça, 06 de dezembro de 2022
Data de validade da versão: sexta, 06 de dezembro de 2024

1) Neurotoxoplasmose:
É a principal causa de lesão com efeito de massa no SNC, cerca de 50-70% dos casos. O quadro clínico geralmente é subagudo com duração de 2 a 3 semanas.
É uma infecção que ocorre geralmente em pacientes com contagem de linfócitos T CD4 baixa, sendo <100 células/mm³ em cerca de 80% dos casos. Assim sendo, em caso de lesões centrais com efeito de massa em pacientes imunocompetentes outras etiologias deverão ser investigadas como, por exemplo, o glioblastoma e metástases. O agente etiológico da neurotoxoplasmose é o protozoário Toxoplasma gondii e as principais manifestações clínicas são:
• Alteração do sensório – 50-90%
• Hemiparesia e outros sinais focais – 60%
• Cefaléia – 50%
• Convulsões – 30%
• Acidentes vasculares cerebrais – 30%
• Sinais de irritação meníngea – <10%
• Febre, confusão mental e coma podem estar presentes

2) Neurocriptococose:
O agente etiológico é a levedura encapsulada Cryptococcus neoformans. É o principal agente oportunista causador de meningite no paciente com AIDS. Acomete indivíduos com contagem de linfócitos T CD4 <100 células/mm³. O quadro clínico também é subagudo, sendo os principais sinais e sintomas:
• Febre e cefaléia* – 75%
• Alterações de sensório, pares cranianos, visuais – 15-20%
• Convulsões – 15-20%
• Sintomas focais - <5%
• Lesões extraneurais (pulmão, baço, fígado, medula óssea, gânglios) – 20-60%
• Náuseas, vômitos*, mal estar geral
• Rigidez de nuca é vista em menos de 1/3 dos casos
*geralmente a cefaléia é muito intensa, com náuseas e vômitos indicando aumento importante da pressão intracraniana, evidenciada pela alta pressão de abertura na punção do líquido céfalo-raquidiano (LCR).

3) Encefalite por Citomegalovírus (CMV):
A infecção pelo CMV (citomegalovírus) atinge pouco mais de 0,5% dos pacientes com AIDS, principalmente aqueles com linfócitos T CD4 <100 células/mm³. A doença neurológica por CMV compreende um espectro distinto de manifestações, sendo elas demência, encefalite e poliradiculomielopatia ascendente.
A encefalopatia por CMV compreende uma urgência infecciosa e se apresenta com delírio, alterações dos pares cranianos, ataxia e nistagmo. A evolução é relativamente rápida (poucas semanas). Recomenda-se a investigação oftalmológica complementar, visto que o CMV com freqüência ocasiona retinites agressivas.

4) Retinite por CMV:
A infecção pode ser assintomática ou cursar com alterações visuais como escotomas, moscas volantes, diminuição do campo visual ou da acuidade visual. Sua incidência é maior nos pacientes com imunodepressão grave (T CD4 <50 células/mm³).

5) Outras infecções oportunistas no SNC com manifestação mais arrastada:

5.1) Leucoencefalopaita multifocal progressiva (LEMP):
Causada pelo vírus JC (papovavírus). Atinge cerca de 4% dos pacientes AIDS, especialmente aqueles com linfócitos T CD4 <100 células/mm³. Doença insidiosa, com sinais e sintomas de comprometimento límbico, ataxia e distúrbios visuais. Não há febre e o nível de consciência está preservado. O exame de líquor (LCR) é inespecífico e o diagnóstico geralmente é firmado por Ressonância Nuclear Magnética (RNM), que revela múltiplas lesões hipodensas, não-captantes de contraste, na substância branca subcortical, sem efeito de massa e margens mal definidas. A biópsia cerebral é o método definitivo, mas nem sempre é necessário. É um quadro com pouca resposta ao tratamento, evoluindo para óbito em cerca de seis meses do diagnóstico. Esquemas terapêuticos mais comuns usam a Citosina Arabinosídeo (Ara-C) ou o Cidofovir.

5.2) Linfoma Primário do SNC:
Ocorre quase que exclusivamente em indivíduos intensamente imunocomprometidos (T CD4 <50 células/mm³), portanto guarda relação íntima com a infecção pelo HIV. Os sinais e sintomas mais comuns são confusão, letargia e perda de memória, mas também pode se apresentar com cefaléia, afasia e hemiparesia. É um importante diagnóstico diferencial com a neurotoxoplasmose, pois ambas apresentam efeitos de massa e imagens bastante semelhantes na Tomografia Computadorizada (CT) de crânio. Uma lesão grande e única deve levantar suspeita diagnóstica. O tratamento é pouco satisfatório, com sobrevida média de 2 a 5 meses e a radioterapia cerebral, associada ou não a esquemas quimioterápicos (CHOP, EPOCH, m-BACOD), é o tratamento de escolha.

5.3) Complexo de Demência Relacionado à AIDS (Encefalopatia pelo HIV):
Caracteriza-se por disfunção cognitiva, de evolução subaguda, associada à dificuldade de concentração, esquecimento, irritabilidade nas fases iniciais e demência global na fase crônica. Também são comuns tremores, desequilíbrio, ataxia, hipertonia, hiperreflexia, nistagmo e comprometimento dos esfíncteres. Com a introdução de novos esquemas terapêuticos a incidência da doença está diminuindo. O tratamento baseia-se no controle da própria infecção pelo HIV, com ajuste ou aumento da terapia anti retroviral.

1) Neurotoxoplasmose:
IMAGEM: a tomografia computadorizada (CT) de crânio é de extrema importância para o diagnóstico e deve ser solicitada assim que seja feita a suspeita clínica. Classicamente são visualizadas múltiplas lesões hipodensas com reforço anelar de contraste, preferencialmente em gânglios da base. O edema perilesional é comum, aumentando o efeito de massa e os sinais e sintomas clínicos. A RNM é um exame mais sensível, porém somente deverá ser solicitada se o estudo com CT for inconclusivo como, por exemplo, para diferenciar uma lesão grande e única de múltiplas lesões menores e coalescentes.
SOROLOGIA: a sorologia para Toxoplasma gondii é positiva em 85-90% dos pacientes. Altos títulos de IgG anti-toxoplasmose no soro são preditivos da doença, porém nunca definitivos da mesma.
DIAGNÓSTICO MOLECULAR: é possível confirmar o diagnóstico de neurotoxoplasmose através de amplificação do DNA do protozoário no líquor (PCR). Entretanto, nem sempre será possível realizar a punção do LCR na fase aguda da doença, pela existência de lesões expansivas e sinais de hipertensão intracraniana. A sensibilidade da PCR é satisfatória se realizada em LCR coletado até 9 dias após o início do tratamento específico para neurotoxoplasmose. Após esse tempo, não se recomenda a investigação diagnóstica molecular com PCR, pois o tratamento reduz a carga parasitária no LCR e isso reduz muito a sensibilidade do teste.
BIÓPSIA CEREBERAL: padrão-ouro, mas somente indicado após 14 dias de tratamento direcionado para neurotoxoplasmose na ausência de melhora clínica e radiológica.
Diagnósticos Diferenciais: Entre os possíveis diagnósticos diferenciais estão outras doenças que causam déficit neurológico focal, entre elas: linfoma, criptococoma, AVCs. Lesões com mais de 4 cm e solitárias sugerem a hipótese de linfomas. Lesões sem efeito de massa não envolvendo substância encefálica branca devem sugerir investigação para leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP).

2) Neurocriptococose:
LCR: punção lombar para coleta de líquor é mandatória em casos suspeitos. No entanto, devido à alta incidência de hipertensão intracraniana, com iminente risco de herniação à descompressão no momento da punção lombar, é necessário realizar um exame de imagem antes do procedimento. Observa-se pleocitose discreta (poucas células) com predomínio de linfócitos. O exame de tinta da China é diagnóstico para neurocriptococose (70-94% de positividade), cultura (95-100% de positividade: “padrão-ouro”), ou pesquisa de antígeno criptocócico (criptolátex) que é positivo em até 95% dos casos.
IMAGEM: CT de crânio pode ser normal, mas também não raro apresenta sinais de hipertensão intracraniana, como apagamento de sulcos cerebrais.
CULTURA DE SANGUE: pode também confirmar diagnóstico com indicação de doença disseminada.
Diagnósticos Diferenciais: Outras causas de meningite linfocítica: meningite herpética e neuro-tuberculose.

3) Encefalite por Citomegalovírus (CMV):
Deve ser realizada a suspeita clínica em pacientes com AIDS e contagem de linfócitos T CD4 baixa. São comuns alterações hidroeletrolíticas séricas, principalmente hiponatremia (refletindo a adrenalite por CMV). O líquor apresenta aumento de proteínas e pleocitose mononuclear. A sensibilidade do PCR para CMV no LCR é em torno de 80% e a especificidade de 90%. Na CT de crânio, geralmente é visualizada captação periventricular e meníngea do contraste.
Diagnósticos Diferenciais: encefalite pelo HIV, LEMP, embora o curso de tais doenças seja mais demorado e progressivo. Encefalopatia herpética também é um diagnóstico que deve ser aventado.

4) Retinite por CMV:
O diagnóstico pode ser realizado por fundoscopia, a qual geralmente revela infiltrados retinianos perivasculares amarelados e hemorragia intra retiniana. Hemoculturas e testes antigênicos são de baixa utilidade no diagnóstico por serem pouco específicas, no entanto, podem ajudar nos testes de sensibilidade em casos de recidiva. O PCR para CMV no humor vítreo e aquoso é altamente específico para a doença.
Na prática, a avaliação oftalmológica é decisiva para a suspeita diagnóstica e início do tratamento.
Diagnósticos Diferenciais: Outras retinopatias, infecciosas ou não, entre elas as causas por toxoplasma, herpes, rubéola e sífilis. Sempre suspeitar em pacientes gravemente imunocomprometidos. Solicitar a avaliação de oftalmologista.

1) Neurotoxoplasmose:
O tratamento empírico deve ser iniciado imediatamente, exceto em casos selecionados (lesões gigantes, sugestivas de linfoma,por exemplo). O tratamento de escolha é Sulfadiazina, Pirimetamina e Ácido folínico (para evitar danos relacionados ao efeito antagonista ao folato pela ação da Sulfadiazina e Pirimetamina). As doses recomendadas são: 100mg/Kg/dia; 4 a 6 gramas, dividida em quatro doses para a Sulfadiazina; 100mg no primeiro dia e manutenção de 50mg/dia nos demais para a Pirimetamina; e 10-15 mg/dia para o Ácido Folínico. A duração total deste tratamento é de 3 a 6 semanas. O uso de corticóides (Dexametasona 4 mg de 6 em 6 horas) deve ser utilizado apenas em caso de imagem com efeito de massa importante e rebaixamento do nível de consciência (situações com risco iminente de herniação).
É esperada uma evolução satisfatória nos primeiros 14 dias, com 85% dos pacientes respondendo ao tratamento. O controle tomográfico deve ser realizado entre 10-14 dias de tratamento para avaliação da regressão das lesões. Uma biópsia cerebral poderá ser indicada em casos de ausência de resposta clínico-radiológica ao tratamento para melhor elucidação. O uso profilático de Sulfametoxazol/Trimetoprim, mesmo que com outras finalidades, diminui drasticamente a probabilidade da doença.

2) Neurocriptococose:
O tratamento é normalmente dividido em duas fases distintas. A fase de indução, com duração de 14 dias, deve contar preferencialmente com Anfotericina B (dose endovenosa de 0,6 a 1 mg/Kg/dia). Ao final da primeira fase, o LCR deve ser coletado e espera-se sua esterilização (cultura negativa), o que ocorre em 60-90% dos pacientes. Se não ocorrer a negativação, a fase de indução deverá ser prolongada.
A fase de indução é seguida pela fase de manutenção e a droga de escolha é o Fluconazol (400mg/dia), por mais seis a oito semanas. Posteriormente recomenda-se manter Fluconazol em doses menores (200mg/dia) por tempo indeterminado.
O prognóstico da doença não é bom. Existem alguns fatores prognósticos ruins como nível de hipertensão intracraniana desenvolvida, baixa celularidade no líquor, hiponatremia, CT de crânio alterada, altos títulos de antígeno criptocócico no LCR e doença disseminada. O desenvolvimento de hipertensão intracraniana é relativamente comum e potencialmente letal se não tratado (com punções de repetição para drenagem ou eventualmente instalação de derivação ventrículo-peritoneal).

3) Encefalite por Citomegalovírus (CMV):
O tratamento é realizado com Ganciclovir (5mg/Kg divididos em 2 doses, por 3 a 6 semanas) e/ou Foscarnet (90mg/Kg EV, divididos em 2 doses), mas geralmente a resposta é pouco satisfatória.

4) Retinite por CMV:
O tratamento é realizado com Ganciclovir (5mg/Kg por dose, em duas doses, por 3 a 6 semanas). Após o término do tratamento a terapia de manutenção é feita com Ganciclovir EV, 5mg/Kg uma vez ao dia, cinco vezes por semana em regime de hospital-dia. A suspensão do tratamento de manutenção ocorre após elevação do CD4, após o início da terapia antirretroviral. Na na falta de resposta ao Ganciclovir, uma alternativa é o Foscarnet (90mg/Kg EV, divididos em 2 doses), mas geralmente a resposta é pouco satisfatória.
O uso do Ganciclovir está associado a pancitopenia, especialmente neutropenia, sendo por vezes necessário o uso de Filgrastima (300 mg/dia).

1) Rachid, M. ; Schechter M. – Manual de HIV/AIDS, 8ª edição
2) Bartlett, J.G. ; Gallant, J.E. – Tratamento Clínico da Infecção pelo HIV
3) Koralnik, I.J. – Approach to HIV-infected patients with central nervous system lesions
4) Cox, G.M ; Perfect, J.R – Epidemiology, clinical manifestations, and diagnosis of Cryptococcus neoformans meningoencephalitis in HIV-infected patients
5) Emergências clínicas : abordagem prática / Herlon Saraiva Martins... [et al.] – 8 ed. Ver. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2013.